Muro Com Saída

“A revolta-se deita-se na cama (…) A revolta às vezes deita-se na cama – para fazer amor.”

– Alberto de Lacerda: “Compreender Paula Rego”. Publico/MAC Serralves; pp.8

Um muro com saída não é um muro; é uma passagem com contornos ou por assim dizer, um revestimento. A passagem é deste modo sublinhada, reforçada fisicamente, quase que forçando a um uso compulsivo.

Um muro é antes de mais uma divisão, uma separação de terrenos diferentes.

A querela israelo-palestiniana parece assentar em factores de natureza para lá dos elementos de matriz filosófico-religiosa. Há de facto interesses outros que confundem a identidade da problemática das disputas conseguindo esses, sobrepor-se à razão primeira do seu acontecer. Esse lado, que em termos de inquirição do problema deverá ser primaz, em termos plásticos interessa-me menos. Existe um certo fascínio pessoal pelo carnavalesco das situações. Aquilo que é tanto corpo como imagem como espectáculo como real.

No contexto da disputa territorial (e neste específico enquadramento societal), os homens surgem como os elementos activos do processo de contraponto. Os homens são os contestatários, os agressores, os rebeldes, os defensores, os manifestantes, os visíveis. Interessa-me essa predominância do masculino. Conquanto deva ressalvar que o meu ponto de interesse se centra nesse masculinismo omnipresente, quer na participação activa do agente social, quer na construção activa da imagem do conflito.

Toda esta relação de apartheid pede intimidade. A natureza do problema está de facto, na perda dos códigos de familiaridade com outro contexto e outra cultura. O muro marca fisicamente essa perda de possibilidade de intertextualidade cultural. Tal como o jovem Werther de Goethe, essa impossibilidade tão próxima (no seu caso, a do amor) aumenta a tensão e a pulsão de morte. Julgo que esta metáfora é perfeita para compreender como a separação pode ser lida dentro da perspectiva amorosa.

Cada cultura terá as suas especificidades (privacidades). Mas não é possível negar que esses contextos estão (embora por vezes apartados em termos de imagem: a burka e o trajado do judeu ortodoxo) imiscuídos. Da mesma forma que uma relação amorosa pede intimidade – só existe na intimidade, a partilha da resolução de um cisma neste contexto (que é por si só tão compósito), depende da resolução dentro desta relação de amor do reconhecimento do espaço do outro (a sua privacidade) no contexto do meu espaço (a intimidade que partilhamos). Criar um muro implica introduzir um terceiro termo ausente (que não é o nós, o da possibilidade da relação ser/existir) mas a negação ela mesma.

A história recente dos apartheids europeus e dos seus genocídios (sobretudo o da costa macedónica da década de 90) permite-nos perceber, que a cauterização de uma ferida (no seu processo de reconstituição) acentua a visibilidade e presença da ferida e a possibilidade da regeneração. Cindir tão marcadamente um espaço, um contexto, é acima de tudo, mais que uma irresponsabilidade democrática, um acto da maior violência ética, a demonstração da inépcia da forma operante do diálogo e a deplorável instituição de uma nova mitologia da verdade. Neste tipo de interferência não há possibilidade de diálogo de regeneração, de cauterização: há corte sem ferida, cura sem cicatriz.

Israel sonha com a promessa de si (como Terra Prometida), essa metafísica de um Povo que tinha a sua valia no facto de habitar o coração dos seres que procuravam encontrá-la em qualquer canto da Terra. Talvez por lhe terem conseguido dar a configuração dessa coisa (em país), a própria identidade de Israel se tornara desinteressante. Construir um limite físico para se demarcar não um território espacial, mas criar uma oposição que lhe permita repensar-se como oposto e não enquanto reflexivo de si, de si enquanto colono e cobiçoso do traço histórico dos outros, revela que Israel enquanto coisa existente está em contradição com a imagem de si como sonho.

André Alves